Como ele está morto e nunca em vida conversou com alguém sobre o assunto, jamais saberemos os motivos e as circunstâncias psíquicas que fizeram com que o rapaz entrasse na escola de Realengo e praticasse aquele massacre de crianças. Todos temos o direito de fazer suposições, mas jamais conheceremos a verdade, é inútil insistir.
Talvez nos reste apenas tirar das circunstâncias da tragédia algum ensinamento, seguindo umas poucas pistas a nosso dispor. A mais importante delas está certamente na carta deixada pelo assassino, um pouco subestimada pelo que andei lendo nos jornais.
Ali está, antes de tudo (ou “primeiramente”, como o autor a inicia), uma ostensiva divisão do mundo entre os “puros” e os “impuros”, não podendo estes nem ao menos tocar em seu corpo. Mais do que fazendo uma declaração religiosa fundamentalista, Wellington está assim se referindo à incompatibilidade entre ele e os outros, sendo estes os que não merecem viver no mesmo mundo que ele.
Talvez estivesse até dividido entre esse “eu” e “o outro”, sendo ele mesmo as duas coisas. Wellington atirou de preferência em meninas, como se estivesse eliminando preferencialmente o desejo que o tornava “impuro”. Ou seja, que o tornava “o outro”. Mas isso, mais uma vez, é apenas uma suposição.
Como também poderia estar se vingando do que outras crianças podem ter feito com ele no passado, nas mesmas salas de aula em que perseguiu suas vítimas. Alguns relatos dizem que Wellington teria sido alvo de bullying (será que o verbo “bolinar” é um anglicismo decorrente de “bullying” ou os dois vocábulos têm igual raiz latina?), quando estudou naquela mesma escola dos 11 aos 14 anos de idade e era conhecido como Sherman (referência ao nerd de “American Pie”) ou Suingue (por mancar de uma perna).
O que é evidente, a partir das poucas pistas deixadas, é que a tragédia na escola de Realengo está repleta, por todos os lados, de graves e clássicos sintomas de intolerância, uma incapacidade de suportar a diferença, um horror dela que nos impede de viver em paz com o outro.
Nesta mesma semana em que Wellington invadiu a escola atirando em crianças, uma menina chamada Adriele, de 16 anos, foi assassinada no interior de Mato Grosso do Sul por dois rapazes que não se conformavam com o romance dela com a irmã deles. Na semana anterior, Michael, da equipe do Vôlei Futuro, era objeto de brutal manifestação coletiva de homofobia, num ginásio de Contagem, na região metropolitana de Belo Horizonte, por ter-se declarado homossexual. Uma tradição de nosso esporte: há cerca de 10 anos, o jogador Lilico já tinha sido excluído da seleção brasileira de vôlei pela mesma razão.
Por esses mesmos dias, o deputado Jair Bolsonaro falava na televisão da “promiscuidade” que não permitia a seus filhos, a de se relacionar com uma mulher negra como Preta Gil. Assim como um pastor evangélico afirmava, em sua pregação religiosa, que os africanos eram fatalmente herdeiros de maldição lançada por Noé, em nome de Deus, logo depois do dilúvio.
Um pouco mais longe de nós, outro religioso, desta vez na Flórida, queimava em público um exemplar do Alcorão, o livro sagrado dos islamistas. O que provocou, em represália, o assassinato de dezenas de pessoas no Afeganistão, vítimas de homens-bomba.
Se o culpado for sempre o outro, se o mundo estiver dividido sempre entre os puros e os impuros, não evitaremos nunca novos Wellington, nem que toda a polícia do país passe a trabalhar exclusivamente na porta de nossas escolas. A resistência à diferença, o horror a ela, sempre foi causa ou pretexto de todos os genocídios na história da humanidade.
Às vezes, ela se disfarça sofisticadamente em ideologia ou visão de mundo, com teorias cheias de argumentos. Como no nazi-fascismo de Hitler, Mussolini, Pinochet e tantos outros; ou no comunismo de Stalin, Mao, Pol-Pot e tantos outros. Mas, no fundo, todas essas formas de autoritarismo que encharcaram o século XX de sangue partiram sempre da ideia de rejeição da diferença, por medo ou ignorância, por má ciência ou simples superstição.
Um certo cinema, sobretudo o norteamericano de ação, nos encheu e ainda nos enche a cabeça de estímulos a esse combate à diferença. As batalhas intergaláticas de humanos decentes contra alienígenas do mal apenas substituem a incompatibilidade clássica entre o branco civilizador e o indígena selvagem do Velho Oeste, sucedendo aos épicos de guerra contra os insensíveis amarelos do Sudeste da Ásia e os pérfidos árabes do Oriente Médio.
Nesse sentido, um filme como “E.T.”, de 1982, fez mais pela democracia americana do que muito discurso de liberais locais. No filme de Steven Spielberg, a amizade entre a menina interpretada por Drew Barrymore e o extraterrestre monstruoso, perseguidos pelas máscaras e tubos higienicamente brancos dos eugenistas comandados por Pete Coyote, era uma perfeita metáfora do que poderia ser o mundo sem o medo do outro.
Ninguém nasce racista ou homofóbico, ninguém nasce com preconceito algum. A educação que recebemos ao longo de nossos primeiros anos de vida é que nos torna assim ou assado. E isso é portanto uma responsabilidade de todos, da sociedade onde vivemos e no seio da qual seremos preparados para a vida
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